As alterações dermatológicas apresentam grande prevalência em crianças, representando queixa em aproximadamente 30% das consultas pediátricas.1 Elas podem ser manifestações de doenças sistêmicas, como infecções fúngicas, virais, bacterianas, parasitárias, de reações medicamentosas, ou doenças genéticas. Exame físico adequado é importante para o reconhecimento do tipo de lesão.
Manifestações cutâneas se apresentam de maneira diferente em peles negras em comparação com peles claras, o que, quando desconhecido pelo profissional, leva a subdiagnóstico, prejudicando o prognóstico do paciente, que recebe tratamento tardio ou equivocado.2 Há estudos que demonstraram que mulheres negras estão três vezes mais sujeitas a serem subdiagnosticadas com lúpus eritematoso sistêmico.3 Outras dermatoses também comumente abordadas erroneamente são o vitiligo, muitas vezes considerado suspeita de hanseníase, e a pitiríase versicolor, confundida com dermatite seborreica, eritrasma, sífilis secundária ou pitiríase rósea.3
No Brasil, o Censo 2022 revelou que a maioria dos entrevistados se declarou parda, representando 45,3% da população, enquanto a proporção de brancos diminuiu, e a de pretos, pardos e indígenas aumentou em relação a 2010.4 No entanto, observa‐se deficiência de estudos no âmbito da representatividade de peles negras em livros de referência brasileiros, o que motivou este trabalho. Assim, avaliamos as imagens presentes em livros‐texto de Pediatria, verificando a frequência de fotografias com alterações dermatológicas em peles negras.
Para o estudo, três livros‐texto de Pediatria Geral e um de Dermatologia Pediátrica foram selecionados. Três deles estavam disponíveis na biblioteca virtual da Universidade Federal de Juiz de Fora, local da pesquisa; para o quarto livro, foi adquirida edição digital. A lista de livros e capítulos selecionados está disponível no Material Suplementar. Esses livros foram selecionados dentre aqueles disponíveis na biblioteca virtual por apresentarem imagens coloridas, ao contrário dos demais livros consultados.
No presente estudo, foram incluídas imagens de lesões cutâneas disponíveis nos capítulos referentes a doenças dermatológicas ou infecciosas (p. ex., doenças exantemáticas). As imagens foram extraídas dos livros e catalogadas, excluídas aquelas em preto e branco, as que exibiam exclusivamente mucosas, conjuntiva, palma das mãos ou plantas dos pés ou aquelas cuja qualidade impedisse a identificação da cor da pele.
A cor da pele foi avaliada por dois pesquisadores independentes, utilizando os fototipos de pele da escala de Fitzpatrick. Os tipos de pele I a III foram considerados pele clara, e os tipos IV a VI foram considerados pele escura, conforme definição prévia em literatura.5 As discrepâncias entre pesquisadores foram resolvidas por um terceiro avaliador. Na estatística foi realizada análise descritiva, e a concordância entre observadores foi avaliada usando o teste de Kappa de Cohen.6
Os critérios de inclusão foram atendidos em 797 imagens, que foram inicialmente selecionadas. Dessas, 91 foram excluídas por não possibilitarem avaliação apropriada da cor da pele: nove eram imagens em preto e branco; 79 exibiam exclusivamente mucosas, conjuntiva, palmas ou plantas; duas eram repetidas; e uma representava um feto. Desse modo, 706 imagens foram incluídas, porém 11 delas não puderam ser classificadas em virtude da qualidade da imagem ou porque a foto exibia apenas a lesão, sem regiões de pele saudável a serem avaliadas. Assim, 695 imagens foram classificadas quanto à cor da pele. Ao classificar as imagens em pele clara ou pele negra, houve concordância interobservador moderada, com Kappa de 0,704 e p<0,001.
As frequências absolutas e relativas de imagens representando peles negras e brancas estão detalhadas na tabela 1. A proporção de imagens com pele negra variou entre 16,3% e 37,7%; o livro 4 apresentava o maior percentual. Quanto às doenças abordadas, as pitiríases tiveram maior percentual de imagens com pele negra (53,5%), enquanto as doenças reumatológicas e imunológicas tiveram o menor percentual (14,1%).
Representatividade das cores de pele nas imagens analisadas, para cada livro e grupo de doenças
n (%) | ||
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Pele negra | Pele branca | |
Livro 1 (n=172) | 28 (16,3) | 144 (83,7) |
Livro 2 (n=87) | 15 (17,3) | 72 (82,7) |
Livro 3 (n=28) | 7 (25,0) | 21 (75,0) |
Livro 4 (n=408) | 154 (37,7) | 254 (62,3) |
Reumatológicas/ imunológicas (n=85) | 12 (14,1) | 73 (85,9) |
Acne (n=25) | 4 (16,0) | 21 (84,0) |
Dermatite de fraldas (n=5) | 1 (20,0) | 4 (80,0) |
Outras dermatites (n=21) | 5 (23,8) | 16 (76,2) |
Alterações ungueais (n=12) | 3 (25,0) | 9 (75,0) |
Doenças exantemáticas (n=46) | 12 (26,0) | 34 (74,0) |
Lesões elementares (n=31) | 9 (29,0) | 22 (71,0) |
Lesões congênitas (n=128) | 38 (29,7) | 90 (70,3) |
Infecções cutâneas (n=132) | 40 (30,3) | 92 (69,7) |
Discromias (n=8) | 3 (37,5) | 5 (62,5) |
Dermatite atópica (n=35) | 13 (37,1) | 22 (62,9) |
Urticária (n=10) | 4 (40,0) | 6 (60,0) |
Pitiríasesa (n=15) | 8 (53,3) | 7 (46,7) |
Outros (n=142) | 52 (36,6) | 90 (63,4) |
Total (n=695) | 204 (29,3) | 491 (70,7) |
A figura 1 mostra em gráfico o percentual de imagens classificadas como pele branca ou negra para cada livro e o total. A figura 2 exibe o percentual de imagens classificadas como pele branca ou negra de acordo com a doença ou lesão dermatológica.
A capacidade de identificação das manifestações cutâneas de doenças em diferentes fototipos de pele é essencial na avaliação e determinação da conduta por profissionais da saúde. Os resultados desta pesquisa mostram que a maioria das imagens que ilustram os livros de pediatria e dermatologia pediátrica avaliados retrata lesões cutâneas de pacientes com pele branca. Isso se torna um problema quando se entende que, a depender da cor da pele, uma mesma doença pode se manifestar de maneiras distintas.5
Pesquisas visando a análise de imagens em livros e materiais da área médica foram realizadas com a intenção de averiguar a representatividade de peles negras. Uma pesquisa em livros de Oftalmologia demonstrou que 92,1% das imagens eram de peles claras e 7,9% de peles escuras,7 enquanto pesquisa semelhante realizada pelo American College of Rheumatology afirma que, em materiais da área Reumatológica, apenas 13,4% das imagens apresentavam peles negras.8
Além disso, estudos têm destacado sub‐representação significante da pele negra nos currículos educacionais médicos dos Estados Unidos, de modo que a insuficiência de instrução adequada começa na graduação e persiste ao longo da residência. Essa lacuna educacional é evidente na escassez de imagens que retratam condições dermatológicas comuns e raras em tons de pele mais escuros nos materiais didáticos e recursos educacionais, além da falta de treinamento formal em muitos programas de residência.9
Um estudo mostrou que quase 50% dos dermatologistas não têm experiência suficiente com manejo de lesões em pele negra durante sua formação.10 Isso se revela em dados preocupantes, como no fato de que minorias étnicas apresentam piores desfechos de câncer de pele melanoma e não melanoma.10 Ainda nesse sentido, um estudo mostrou a ausência de representação adequada de pele negra em imagens relacionadas a manifestações cutâneas da COVID‐19, com consequências diretas da lacuna para a saúde pública, especialmente considerando o impacto desproporcional da pandemia na comunidade negra.5
Como limitações deste estudo, destaca‐se a seleção de livros de Pediatria, que pode restringir a representatividade de lesões cutâneas mais comuns em adultos; a subjetividade interobservador da avaliação do fototipo de pele, podendo afetar a precisão das classificações; e, ainda, o desafio de estarem sendo analisadas fotografias, pois a iluminação e a nitidez das imagens podem distorcer a percepção da cor da pele. Apesar disso, a abordagem sistemática na seleção dos livros e imagens aumenta a transparência e a replicabilidade. A utilização da escala validada de Fitzpatrick propicia maior padronização na classificação, reduzindo a subjetividade. O uso do teste de Kappa de Cohen para avaliar a concordância entre os observadores proporciona uma medida robusta da consistência das classificações.
A escassez de representação de pacientes de pele negra com lesões cutâneas na comunidade científica não apenas reflete, mas também perpetua disparidades no atendimento à saúde de pacientes de diferentes raças e etnias. A ausência de uma variedade de imagens de condições dermatológicas em pele negra pode resultar em falta de familiaridade por parte dos profissionais de saúde na identificação e no diagnóstico dessas condições em pacientes com pele mais escura. Esse desconhecimento pode levar a atrasos, subdiagnóstico ou diagnóstico incorreto, impactando a qualidade e a eficácia do tratamento. Essas consequências negativas destacam a importância crítica de aumentar a representação e visibilidade de condições dermatológicas em pacientes de pele negra na literatura científica e na prática clínica. Tornam‐se necessárias a implementação de mudanças curriculares para aumentar o reconhecimento de fototipos diversos e a criação de atlas de imagens e manuais de Dermatologia focados em pele negra.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresMaria Eduarda Duarte de Oliveira: Levantamento dos dados; redação do artigo; revisão crítica da literatura.
Ronald Godinho de Oliveira Silva: Levantamento dos dados; redação do artigo; revisão crítica da literatura.
Melissa Moreira Mansur Clemente: Levantamento dos dados; redação do artigo; revisão crítica da literatura.
Sabrine Teixeira Ferraz Grunewald: Concepção e desenho do estudo; análise estatística; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.