Journal Information
Vol. 98. Issue 4.
Pages 487-492 (1 July 2023)
Visits
6840
Vol. 98. Issue 4.
Pages 487-492 (1 July 2023)
Artigo Original
Full text access
Neomicina: fontes de contato e estudo da sensibilização entre 1.162 pacientes atendidos em serviço terciário
Visits
6840
Maria Antonieta Rios Scherrera, Érica Possa Abreua, Vanessa Barreto Rochab,
Corresponding author
a Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
b Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
This item has received
Article information
Abstract
Full Text
Bibliography
Download PDF
Statistics
Tables (6)
Tabela 1. Dados demográficos de 71 pacientes sensibilizados à neomicina
Tabela 2. Localizações mais frequentes da dermatite alérgica de contato à neomicina
Tabela 3. Polissensibilização
Tabela 4. Medicações tópicas contendo neomicina
Tabela 5. Apresentações tópicas com neomicina
Tabela 6. Vacinas contendo neomicina na composição
Show moreShow less
Resumo
Fundamentos

A neomicina é usada em várias formulações farmacêuticas vendidas sem prescrição médica no Brasil. Na Europa e no Canadá, onde não está disponível livremente, a frequência de sensibilização é menor que nos Estados Unidos, onde tal fato não ocorre.

Objetivo

Mostrar a frequência de sensibilização à neomicina observada em serviço terciário e as formulações farmacêuticas vendidas no Brasil contendo esse antibiótico.

Método

Análise retrospectiva dos resultados positivos de sensibilização à neomicina, obtidos por meio de testes epicutâneos realizados em serviço terciário, no período de 2009‐2018. Pesquisa dos medicamentos tópicos e das vacinas contendo neomicina em bancos de dados brasileiros disponíveis na internet.

Resultados

Dentre 1.162 pacientes, 71 (6%) apresentaram reações positivas à neomicina, dos quais 65% eram mulheres e 35%, homens. Quarenta e seis por cento tinham mais de 50 anos, e 24% tinham história pessoal de atopia (tabela 1). O tempo de evolução da dermatite variou de quatro meses a 20 anos; 69% dos pacientes apresentavam lesões nos membros superiores, 55% nos membros inferiores, e 42% das lesões eram disseminadas em mais de quatro localizações (tabela 2). Polissensibilização foi detectada em 55% dos casos. Desses, 28% estavam ligados à sensibilização a alérgenos da borracha e 27% ao bicromato de potássio (tabela 3). Foram encontradas 158 apresentações tópicas da neomicina: 79 pomadas, 58 cremes, 10 soluções oftalmológicas, sete soluções otológicas, uma solução oral, duas soluções nasais e um pó antisséptico, além de 11 tipos de vacinas.

Limitação do estudo

Estudo retrospectivo.

Conclusão

A sensibilização à neomicina foi de 6%, afetando mais o sexo feminino em idade superior a 50 anos, acometendo principalmente membros superiores e inferiores, em quadro de dermatite de contato crônica. A neomicina foi encontrada em 135 formulações, a maioria disponível sem prescrição, além de 11 vacinas variadas.

Palavras‐chave:
Alergia a medicamentos
Dermatite alérgica de contato
Neomicina
Full Text
Introdução

A neomicina é antibiótico da família de aminoglicosídios que bloqueia a síntese proteica das bactérias por meio de ligação irreversível com a subunidade nuclear ribossomal 30S. É efetiva contra anaeróbicos e estafilococos e Gram negativos, exceto Pseudomonas aeruginosa. Após seu uso prolongado, pode se desenvolver resistência bacteriana. Sua absorção percutânea é mínima, e é usada em formulações tópicas para tratamento de pele, ouvido e olhos, em soluções para instilação urinária, solução para irrigação peritoneal, tratamento odontológico e veterinário, em rações e aquários. Por via oral, é empregada para esterilizar o intestino antes de cirurgias e para tratar coma hepático. Traços dessa substância estão presentes em várias vacinas.1,2

No Brasil e nos Estados Unidos, pode ser adquirida sem receita médica, o que ocasiona alta frequência de sensibilização, diferentemente dos países europeus, onde essa frequência é baixa.1,3,4

Métodos

Foram submetidos a testes epicutâneos 1.162 pacientes com suspeita de dermatite de contato, entre outubro de 2009 a outubro de 2018. Utilizou‐se a bateria padrão brasileira, composta por 30 substâncias (FDA‐allergenic, RJ, Brasil) em contentores do tipo Finn chambers® (Oy, Finlândia) aplicados no dorso dos pacientes com leituras em 48 e 96 horas. As reações foram graduadas em+,++e+++seguindo os critérios do International Contact Dermatitis Research Group (ICDRG).

Tabela 1.

Dados demográficos de 71 pacientes sensibilizados à neomicina

  n (%) 
Mulheres  46 (65) 
Homens  25 (35) 
Caucasianos  21 (29,5) 
Não caucasianos  50 (70,5) 
Atopia  17 (24) 
Idade: 17 a 77 anos,>50 anos  33 (46) 
Tabela 2.

Localizações mais frequentes da dermatite alérgica de contato à neomicina

Localização  Número  Porcentual 
Membros superiores  49  69 
Membros inferiores  39  55 
Pescoço  28  39 
Mãos  28  39 
Pálpebras  12  17 
Orelha  11 
Anogenital 
Disseminado (> quatro locais)  30  42 
Total  166   
Tabela 3.

Polissensibilização

Alérgenos  Número  Porcentual 
Alérgenos da borracha  20  28 
Natureza ocupacional  17  24 
Bicromato de potássio  39  27 
Natureza ocupacional  11  15 
Total  59  55 

Os dados foram coletados em tabela Excel, com seleção dos positivos a neomicina, e analisados quanto a aspectos demográficos, localização das lesões, tempo de evolução, história pessoal de atopia, associação com outros alérgenos e relevância baseada na história clínica e exposição ao agente. Também foi realizada pesquisa na internet sobre os medicamentos genéricos e similares de marcas comerciais, além de vacinas contendo neomicina disponíveis em nosso meio. Esses medicamentos foram categorizados de acordo com os princípios ativos associados à neomicina (tabela 4) e, então, redistribuídos conforme os veículos disponíveis no mercado (tabela 5).

Tabela 4.

Medicações tópicas contendo neomicina

Categoria  Composição  Total 
Isolado  Sulfato de neomicina 
Antifúngico  Sulfato de neomicina+tiabendazol 
AntibióticoSulfato de neomicina+bacitracina zíncica  2
Sulfato de neomicina+bacitracina de zinco+óxido de zinco+peróxido de zinco+sulfato de polimixina B 
Esteroide  Sulfato de neomicina+acetato de clostebol 
AnestésicoSulfato de neomicina+tartarato de bismuto de sódio+cloridrato de procaína  3
Sulfato de neomicina+tartarato de bismuto e sódio+cloridrato de procaína+mentol 
Sulfato de neomicina+cloridrato de lidocaína+hialuronidase 
CorticoideSulfato de neomicina+fosfato dissódico de dexametasona  5
Sulfato de neomicina+valerato de betametasona 
Sulfato de neomicina+fludroxicortida 
Sulfato de neomicina+desoximetasona 
Sulfato de neomicina+acetato de dexametasona 
Corticoide+antibióticoSulfato de neomicina+acetato de prednisolona+sulfato de polimixina b  3
Sulfato de neomicina+hidrocortisona+sulfato de polimixina B 
Sulfato de neomicina+dexametasona+sulfato de polimixina B 
Antibiótico+antifúngico+antiparasitário  Sulfato de neomicina+sulfato de polimixina B+nistatina+tinidazol 
Vasoconstritor+corticoide  Sulfato de neomicina+cloridrato de nafazolina+fosfato dissódico de dexametasona 
Corticoide+antibiótico+antifúngicoSulfato de neomicina+acetonida de triancinolona+gramicidina+nistatina  4
Sulfato de neomicina+cetoconazol+dipropionato de betametasona 
Sulfato de neomicina+encetoconazol+dipropionato de betametasona 
Sulfato de neomicina+nistatina+dexametasona+fosfato de tirotricina 

Fontes: Consultas. Anvisa, 2022; Topical Antimicrobials. Medscape, 2022.

Tabela 5.

Apresentações tópicas com neomicina

Veículo  Composição  Total 
Cremes  Sulfato de neomicina+acetato de clostebol   
  Sulfato de neomicina+cetoconazol+dipropionato de betametasona   
  Sulfato de neomicina+valerato de betametasona   
  Sulfato de neomicina+desoximetasona   
  Sulfato de neomicina+acetonida de triancinolona+gramicidina+nistatina   
  Sulfato de neomicina+cetoconazol+dipropionato de betametasona   
  Sulfato de neomicina+encetoconazol+dipropionato de betametasona   
  Sulfato de neomicina+nistatina+dexametasona+fosfato de tirotricina   
  Sulfato de neomicina+sulfato de polimixina B+nistatina+tinidazol   
   
Pomada  Sulfato de neomicina   
  Sulfato de neomicina+bacitracina zíncica   
  Sulfato de neomicina+tiabendazol   
  Sulfato de neomicina+acetato de hidrocortisona+troxerrutina+ácido ascórbico+benzocaína   
  Sulfato de neomicina+cetoconazol+dipropionato de betametasona   
  Sulfato de neomicina+valerato de betametasona   
  Sulfato de neomicina+desoximetasona   
  Sulfato de neomicina+fludroxicortida   
  Sulfato de neomicina+dexametasona+sulfato de polimixina B   
  Sulfato de neomicina+acetonida de triancinolona+gramicidina+nistatina   
  Sulfato de neomicina+cetoconazol+dipropionato de betametasona   
  Sulfato de neomicina+encetoconazol+dipropionato de betametasona   
    12 
Suspensão oftalmológica  Sulfato de neomicina+tartarato de bismuto e sódio+cloridrato de procaína+mentol   
  Sulfato de neomicina+acetato de prednisolona+sulfato de polimixina B   
  Sulfato de neomicina+hidrocortisona+sulfato de polimixina B   
  Sulfato de neomicina+dexametasona+sulfato de polimixina B   
   
Solução otológica  Sulfato de neomicina+cloridrato de lidocaína+hialuronidase   
  Sulfato de neomicina+tartarato de bismuto de sódio+cloridrato de procaína   
  Sulfato de neomicina+fluocinolona acetonida+sulfato de polimixina B+cloridrato de lidocaína   
  Sulfato de neomicina+encetoconazol+dipropionato de betametasona   
  Sulfato de neomicina+fosfato dissódico de dexametasona   
   
Solução oral  Sulfato de neomicina+tartarato de bismuto e sódio+cloridrato de procaína+mentol   
  Sulfato de neomicina+tartarato de bismuto de sódio+cloridrato de procaína   
   
Solução nasal  Sulfato de neomicina+cloridrato de nafazolina+fosfato dissódico de dexametasona   
   
Pó antisséptico  Sulfato de neomicina+bacitracina de zinco+óxido de zinco+peróxido de zinco+Sulfato de polimixina B   
   

Fontes: Consultas. Anvisa, 2022; Topical Antimicrobials. Medscape, 2022.

Resultados

Dentre os 1.162 pacientes, 7 (6%) apresentaram reações positivas à neomicina, dos quais 46 (65%) eram mulheres e 25 (35%), homens – 21 (29,5%) caucasianos e 50 (70,5%) não caucasianos. As idades variaram entre 15 e 77 anos (média de 53,5); 33 (46%) tinham mais de 50 anos. Dezessete (24%) tinham história pessoal de atopia. O tempo de evolução da dermatite variou de quatro meses a 20 anos; 77,5% estavam entre 0 e 5 anos. Quarenta e nove (69%) apresentavam lesões nos membros superiores, 39 (55%) nos membros inferiores, seguidos por pescoço e dorso de mãos, ambos afetados em 28 (39%). Doze pacientes (17%) apresentavam lesões nas pálpebras, oito (11%) nas orelhas e nenhum na área anogenital. Trinta (42%) mostraram quadro disseminado, com acometimento em quatro ou mais locais. Trinta e dois (45%) apresentavam de um a três alérgenos positivos, e 39 (55%), mais de três. A relevância atual foi estabelecida em 10 pacientes (14%) e considerada como relevância passada em 20 (28%). Vinte (28%) apresentavam dermatite alérgica de contato a borracha como diagnóstico principal, com 17 (24%) de natureza ocupacional relacionada à borracha. Dezenove (27%) pacientes apresentavam sensibilização ao bicromato de potássio; 11 (15%) ocupacionais, relacionada ao cimento.

No que diz respeito às substâncias, a neomicina esteve presente não apenas em formulações isoladas, mas também associada a outros princípios ativos, os quais também são alérgenos frequentes, como os corticosteroides, outros antibacterianos, antifúngicos, anestésicos e esteroides, conforme mostra a tabela 4.

Quanto às formas de apresentação comercial, a tabela 5 fornece uma lista daquelas que contêm neomicina, além da composição de cada item. Foram encontrados 58 cremes, 79 pomadas, 10 soluções oftalmológicas, sete soluções otológicas, uma solução oral, duas soluções nasais e um pó antisséptico.5–7

Com relação às vacinas, a tabela 6 mostra os 11 imunizantes que contêm neomicina em sua composição, seja na forma de traços, como excipiente, entre os resíduos ou entre os demais constituintes.8–10

Tabela 6.

Vacinas contendo neomicina na composição

Nome  Composição 
Vacina influenza (fracionada, inativada)  Cepas do vírus Myxovirus influenzae inativados, fragmentados e purificados, cultivados em ovos embrionados de galinha. Traços de neomicina ou polimixina, gentamicina e o timerosal como conservantes. 
Vacina varicela  Vírus vivo atenuado, proveniente da cepa Oka. Cada dose da vacina deve conter, no mínimo, 1.350 unidades formadoras de placas (UFP) do vírus contra varicela‐zóster (VVZ) atenuada. Pode conter gelatina e traços de neomicina, kanamicina e eritromicina. 
Vacina sarampo, caxumba, rubéola (tríplice viral)  Vírus vivos (atenuados) das cepas Wistar RA 27/3 do vírus da rubéola, Schwarz do sarampo e RIT 4385, derivada de Jeryl Lynn, da caxumba. Excipientes: albumina humana, lactose, sorbitol, manitol, sulfato de neomicina e aminoácidos. 
DTPa-VIP/Hib  Componentes da vacina tríplice bacteriana acelular (DTPa), contém componente da bactéria Haemophilus influenzae tipo B conjugado e vírus inativados (mortos) da poliomielite tipos 1, 2 e 3. A composição inclui ainda: lactose, cloreto de sódio, 2‐fenoxietanol, hidróxido de alumínio e água para injeção. Traços de antibiótico (estreptomicina, neomicina e polimixina B), formaldeído e soroalbumina de origem bovina. 
DTPa-VIP-HB/Hib  Componentes da vacina tríplice bacteriana acelular (DTPa), componente da bactéria Haemophilus influenzae tipo B conjugado, vírus inativados (mortos) da poliomielite tipos 1, 2 e 3 e componente da superfície do vírus da hepatite B. 
  Componentes: lactose, cloreto de sódio, 2‐fenoxietanol, hidróxido de alumínio e água para injeção. Traços de antibiótico (estreptomicina, neomicina e polimixina B), formaldeído e soroalbumina de origem bovina. 
Vacina adsorvida hepatite A (inativada)  Cada dose da vacina contém 720 U. EL./0,5 mL ou 1.440 U. EL./1,0 mL de antígenos do vírus da hepatite A (VHA). 
  Excipientes: hidróxido de alumínio, polissorbato 20, aminoácidos, fosfato dissódico, fosfato monopotássico, cloreto de sódio, cloreto de potássio e água para injetáveis. 
  Resíduo: sulfato de neomicina. 
Vacina contra raiva uso humano  Vírus inativados da raiva, maltose (estabilizante), albumina humana. 
  Diluente: solução de cloreto de sódio. Traços de estreptomicina, neomicina e/ou polimixina B. 
Vacina oral poliomielite (VOP)  Vacina oral atenuada bivalente composta pelos vírus da pólio tipos 1 e 3. Contém ainda cloreto de magnésio, a sacarose, a neomicina, a estreptomicina ou a eritromicina (estabilizantes) e o vermelho de amarante ou roxo de fenol (corante indicador de pH). 
Vacina inativada da poliomielite (VIP)  Vacina trivalente e injetável, composta por partículas dos vírus da pólio tipos 1, 2 e 3. Contém 2‐fenoxietanol, polissorbato 80, formaldeído, meio Hanks 199, ácido clorídrico ou hidróxido de sódio. Pode conter traços de neomicina, estreptomicina e polimixina B, utilizados durante a produção 
Vacina combinada hepatite A e B  Vírus inativado (morto) da hepatite A e da proteína de superfície do vírus da hepatite B. Outros componentes: sais de alumínio, formaldeído, sulfato de neomicina, fenoxietanol, polissorbato 20, cloreto de sódio e água para injeção. 
Vacina herpes‐zóster  Vacina de vírus vivos atenuados. Cada dose de 0,65 mL contém 19.400 UFP de VVZ da cepa Oka/Merck. Sacarose, gelatina (suína hidrolisada) e traços de neomicina. 

Fontes: Anvisa, 2022; Ministério da saúde, 2014; SBBIM, Instituto Butantan, 2019.

Discussão

A prevalência de testes epicutâneos positivos à neomicina na população geral é cerca de 1%. A sensibilização à neomicina tem se mostrado em queda na Europa, variando de 1,1%‐3,8%, com média de 2,6%.1,2 Anteriormente, havia alcançado 10,2% na Croácia e 18,4% entre crianças em Portugal. Já nos Estados Unidos, tem variado de 7% a 13% nas últimas duas décadas, com média de 11,4%.3,11 O Canadá também mostrou tendência à queda nessa taxa, influenciada pela redução de sua disponibilidade ao público, vendida apenas com prescrição médica.12 No Brasil, dados de 2009 mostraram frequência de 5,7%, muito semelhante ao que encontramos entre 2009‐2018 (6%), mas nesse período não houve mudança nas regras de livre obtenção desse medicamento.13 Ressalte‐se que nossos dados foram coletados com leituras finais de 96 horas, apesar de ser conhecida a possibilidade de reações tardias até no sétimo dia para a neomicina.

Em geral, as pomadas são menos sensibilizantes que cremes e loções, pelo fato de conterem menos conservantes, emulsificantes e solventes. Entretanto, estudos mostram que as propriedades sensibilizantes da neomicina de certa maneira são determinadas pelo veículo. Surfactantes em cremes e loções poderiam reduzir sua sensibilização e, ao contrário, pomadas, à medida que promovem oclusão, aumentariam sua absorção e consequente sensibilização. Desse modo, esses autores recomendam o uso de neomicina em cremes, loções ou pós para reduzir o risco de sensibilização.2,11

Estudo feito no oeste do Canadá sobre a prevalência da neomicina naquela região mostrou predominância de 82,1% no sexo feminino; já em nossos dados foi de 65%, confirmando a tendência de sensibilização maior entre mulheres. A média de idade dos pacientes foi de 49,5 anos, a maioria entre 40 e 50 anos, não muito diferente do encontrado por nós.1,2 Segundo outros estudos, a dermatite de contato alérgica a medicamentos tópicos em geral torna‐se mais comum com o avançar da idade.3

A evolução do eczema se mostrou crônica em todos os casos, variando de quatro meses a cinco anos em 77,5%. Estudo com dados referentes à sensibilização a medicamentos tópicos no Brasil, incluindo a neomicina, foi semelhante.13

Publicações sobre dermatite de contato alérgica a medicamentos tópicos mostram acometimento principalmente nas pernas, enfatizando a presença de dermatite de estase e úlceras de perna. Nossos dados registraram que os membros superiores foram mais atingidos, seguidos pelos membros inferiores, o que poderia ser explicado pela associação com dermatite de contato alérgica ocupacional a borracha e cimento. Outros locais de risco mencionados para dermatite por medicamentos tópicos seriam as pálpebras e a região perianal. Detectamos 17% de lesões nas pálpebras, 11% nas orelhas e nenhum acometimento na área anogenital, apesar de as formulações para essas regiões serem encontradas em nosso meio. Devemos salientar que 42% dos nossos pacientes apresentavam lesões corporais disseminadas.11–13

Fatores predisponentes a alergia por medicamentos tópicos, incluindo a neomicina, seriam: certas localizações (como extremidades inferiores, regiões de dobras, orelhas), uso de curativos oclusivos, medicamentos transdérmicos, dermatoses preexistentes. Dentre essas, insuficiência venosa crônica, otite externa, feridas pós‐cirúrgicas, condições eczematosas crônicas, como aqui observado pela associação com dermatite alérgica de contato a borracha e cimento.3,4,12–15

Dermatite ocupacional a neomicina, em geral, envolve mãos e face, e ocorre em profissionais da área de saúde, farmacêuticos, dentistas e veterinários, o que não observamos em nossa série.1

A polissensibilização, definida como presença de reações positivas a três ou mais haptenos não relacionados, foi descrita principalmente nos estudos feitos com medicamentos tópicos em geral, observada principalmente em pacientes com mais de 70 anos.14–16 Neste relato, encontramos positividade a mais de três alérgenos em 55% dos casos.

A neomicina é composta por quatro anéis ligados por pontes glicosídicas, e um desses anéis é comum a quase todos os aminoglicosídios. Assim, apresenta reações cruzadas com a maioria deles, como amicacina, gentamicina, kanamicina, tobramicina, paromomicina, butirosina. A estreptomicina e a espectinomicina apresentam estrutura peculiar diferente dos outros, ocorrendo em menor número. Dessa maneira, a porcentagem de reações cruzadas à neomicina é 90% para paromicina e butirosina (não disponíveis no Brasil), 70% para framicetina, 60% para tobramicina e kanamicina, 50% para gentamicina e 4% para estreptomicina.17

Como a neomicina está frequentemente associada à bacitracina nas mesmas preparações tópicas, a sensibilização a ambas ou correação não é rara, sugerindo que ambos os antibióticos poderiam agir sinergicamente para elicitar uma resposta imune. São descritas formulações com três antibióticos associando a polimixina B à neomicina e bacitracina. Como a polimixina B não faz parte das baterias padrões de teste de contato, sua frequência de sensibilização é desconhecida.1,17 Na pesquisa das formulações encontradas, detectamos duas associações com bacitracina em veículos pomada e pó antisséptico, e sete com polimixina B – esta última associada a corticoides e antifúngicos em apresentações variadas, entre cremes, pomadas, soluções otológicas, suspensões oftalmológicas e pós antissépticos.

Pequenas quantidades de neomicina absorvidas pelo trato gastrintestinal podem desencadear disseminação das reações de dermatite, aparecimento de lesões em locais prévios de dermatite ou reativação da reação positiva ao teste epicutâneo, a dermatite de contato sistêmica. A administração de outros aminoglicosídios também pode causar tal quadro em pacientes sensibilizados por meio de exposição tópica à neomicina. Já a vacinação com preparações contendo neomicina teoricamente poderia provocar o aparecimento de reações sistêmicas. Entretanto, como o limiar de elicitação das reações é de 100 a 1.000μg de neomicina, e a concentração presente nas vacinas é de 25μg, espera‐se que possa causar reação mínima, transitória e localizada ao ponto da injeção, não sendo, portanto, contraindicação à vacinação.1 A história de reações anafiláticas à neomicina seria contraindicação a seu uso.

As limitações deste estudo referem‐se ao fato de ser um trabalho retrospectivo.

Conclusão

Neste estudo, a sensibilização à neomicina foi de 6%, afetando mais frequentemente as mulheres com idades>50 anos, acometendo principalmente membros superiores e inferiores, em um quadro de dermatite de contato crônica. Nos produtos tópicos, a neomicina foi encontrada em 135 formulações, a maioria disponível sem prescrição médica, além de 11 vacinas variadas.

A redução da livre disponibilidade desses medicamentos, ao lado de prescrições criteriosas, levará à queda desse índice de sensibilização aos patamares europeus, poupando o uso seguro da neomicina para os casos estritamente indicados.

Suporte financeiro

Nenhum.

Contribuição dos autores

Vanessa Barreto Rocha: Concepção e desenho do estudo; revisão crítica do conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; aprovação final da versão final do manuscrito, participação efetiva na orientação da pesquisa.

Érica Possa Abreu: Concepção e desenho do estudo; levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; redação do artigo; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.

Maria Antonieta Rios Scherrer: Concepção e desenho do estudo; levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; análise estatística; redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.

Conflito de interesses

Nenhum.

Referências
[1]
D. Sasseville.
Neomycin.
Dermatitis, 21 (2010), pp. 3-7
[2]
A.R. Atwater.
Allergy to topical Medications.
Fischer's Contact Dermatitis., 7.ed., pp. 145
[3]
E.M. Warshaw, R.L. Shaver, J.G. DeKoven, J.S. Taylor, A.R. Atwater, A.F. Fransway, Patch test reactions associated with nontopical medications: a retrospective analysis of North American Contact Dermatitis Group Data, et al.
2001‐2018. Dermatitis, 32 (2021), pp. e127-e129
[4]
J.F. Elliott, M. Abbas, P. Hull, G. de Gannes, R. Toussi, A. Milani.
Decreasing rates of neomycin sensitization in western Canada.
J Cutan Med Surg., 20 (2016), pp. 446-452
[5]
consultaremedios.com [Internet]. Brasil. Consulta Remédio. [acesso em 24 mar. 2022]. Disponível em: https://consultaremedios.com.br.
[6]
medlineup.gov [Internet]. MedlinePlus. [acesso em 14 mai. 2022]. Disponível em: https://medlineplus.gov/druginfo/meds/a601098.html.
[7]
consultas.anvisa.gov [Internet]. Brasil. Consultas Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. [acesso em 24 mar. 2022]. Disponível em: https://consultas.anvisa.gov.br/#/bulario/.
[8]
bvsms.saude.gov [Internet]. Brasil. Manual de normas e procedimentos para vacinação. Ministério da saúde. [acesso em 4 abr. 2022]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_procedimentos_vacinacao.pdf.
[9]
família.sbim.org [Internet]. Brasil. SBBIM. Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Família. Vacina tríplice bacteriana acelular infantil – DTPa. [acesso em 4 abr. 2022]. Disponível em: https://familia.sbim.org.br/vacinas/vacinas‐disponiveis/vacina‐triplice‐bacteriana‐acelular‐infantil‐dtpa.
[10]
butantan.gov [Internet]. Brasil. Instituto Butantan. Vacina raiva (inativada). [acesso em 14 abr. 2022]. Disponível em: https://butantan.gov.br/assets/pdf/soros_vacinas/vacinas/Bula‐Vacina‐Raiva‐Inativada‐Instituto‐Butantan‐Paciente‐Consulta‐Remedios.pdf.
[11]
N. Hjorth, K. Thomsen.
Differences in the sensitizing capacity of neomycin in creams and in ointments.
Br J Dermatol., 80 (1968), pp. 163-169
[12]
L. Gilissen, A. Goossens.
Frequency and trends of contact allergy to and iatrogenic contact dermatitis caused by topical drugs over a 25‐year period.
Contact Dermatitis., 75 (2016), pp. 290-302
[13]
R. Lazzarini, I. Duarte, J.C.T. Braga, S.L. Ligabue.
Allergic contact dermatitis to topical drugs: a descriptive analysis.
An Bras Dermatol., 84 (2009), pp. 30-34
[14]
A.L. Gosnell, B. Schmotzer, S.T. Nedorost.
Polysensitization and individual susceptibility to allergic contact dermatitis.
Dermatitis., 26 (2015), pp. 133-135
[15]
S. Spring, M. Pratt, A. Chaplin.
Contact dermatitis to topical medicaments.
Dermatitis., 23 (2012), pp. 210-213
[16]
C.M. Green, C.R. Holden, D.J. Gawkrodger.
Contact allergy to topical medicaments becomes more common with advancing age: an age‐stratified study.
Contact Dermatitis., 56 (2007), pp. 229-231
[17]
H.L. Nguyen, J.A. Yiannias.
Contact dermatitis to medications and skin products.
Clin Rev Allergy Immunol., 56 (2019), pp. 41-59

Como citar este artigo: Scherrer MA, Abreu ÉP, Rocha VB. Neomycin: sources of contact and sensitization evaluation in 1162 patients treated at a tertiary service. An Bras Dermatol. 2023;98:487–92.

Trabalho realizado no Anexo de Dermatologia, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Copyright © 2023. Sociedade Brasileira de Dermatologia
Idiomas
Anais Brasileiros de Dermatologia
Article options
Tools
en pt
Cookies policy Política de cookies
To improve our services and products, we use "cookies" (own or third parties authorized) to show advertising related to client preferences through the analyses of navigation customer behavior. Continuing navigation will be considered as acceptance of this use. You can change the settings or obtain more information by clicking here. Utilizamos cookies próprios e de terceiros para melhorar nossos serviços e mostrar publicidade relacionada às suas preferências, analisando seus hábitos de navegação. Se continuar a navegar, consideramos que aceita o seu uso. Você pode alterar a configuração ou obter mais informações aqui.