Paniculite pancreática é manifestação cutânea rara que ocorre em 0,3%–3% dos pacientes com doença pancreática. É postulado que danos ao pâncreas causem a liberação hematogênica de enzimas digestivas, o que aumenta a permeabilidade da microcirculação dentro dos vasos linfáticos e leva à saponificação da gordura com necrose do subcutâneo. A etiologia subjacente mais comum é a pancreatite aguda (88% dos casos), enquanto neoplasias pancreáticas representam cerca de 12%.1–4
Neste artigo, relatamos um caso de paniculite pancreática que ocorreu após exame de colangiografia.
Paciente do sexo feminino, 76 anos, branca, hipertensa, foi internada em hospital de referência aos cuidados da gastrocirurgia por dor abdominal, inapetência, náuseas, vômitos e icterícia havia três dias. Os exames laboratoriais de admissão demonstravam anemia (hemoglobina de 10,2g/dL), leucocitose com neutrofilia (11.930mm3), eosinofilia (450mm3), elevação das transaminases (TGO 85μ/L [normal 14–36μ/L], TGP 331μ/L [normal <35μ/L]), da fosfatase alcalina (180μ/L, normal 36–126μ/L), da gama‐GT (285μ/L, normal 12–43μ/L), da bilirrubina total (7,10mg/dL, normal 0,2–1,3mg/dL) e bilirrubina direta (3,5mg/dL, normal 0–0,3mg/dL), sem alteração da amilase ou lipase.
Foi realizada tomografia abdominal que identificou dilatação de vias biliares intra e extra‐hepáticas, com obstrução na porção distal do colédoco na altura da papila duodenal. Em seguida, realizou‐se colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), associada a esfincterotomia e passagem de prótese biliar plástica. Como não foram identificados cálculos no colédoco, foram sugeridas as hipóteses de papilite, tumor de cabeça de pâncreas ou colangiocarcinoma distal como causa da obstrução.
Cinco dias após a CPRE, a equipe da dermatologia foi acionada pelo surgimento, após o procedimento, de lesões nodulares, dolorosas e eritematosas localizadas nos membros superiores e inferiores (figs. 1 e 2) que haviam apresentado piora importante nas últimas 24 horas. Durante a biopsia cutânea profunda, houve drenagem espontânea de material amarelo‐acastanhado do local. A secreção foi enviada para cultura, que resultou negativa. Novos exames laboratoriais revelaram elevação da amilase (123μ/L [normal 30–110μ/L]) e da lipase (618μ/L [normal 36–126μ/L]). O exame histopatológico evidenciou paniculite aguda supurativa com infiltrado de linfócitos e neutrófilos, esteatonecrose com focos de calcificação incipiente e células‐fantasma (fig. 3).
Exame histopatológico da paniculite pancreática. (A) Paniculite aguda supurativa com predomínio lobular (Hematoxilina & eosina, 100×). (B) Infiltrado inflamatório linfocitário e de neutrófilos (Hematoxilina & eosina, 200×). (C) Esteatonecrose com “células‐fantasma” (Hematoxilina & eosina, 400×). (D) Focos de calcificação em meio à esteatonecrose (von Kossa, 400×).
Os achados clínicos, laboratoriais e histopatológicos indicaram o diagnóstico de paniculite pancreática. A equipe assistente foi orientada quanto ao quadro cutâneo, que deve ser manejado com sintomáticos até a resolução da doença de base, havendo resolução completa espontânea em 45 dias. A paciente segue, há dois anos, com diagnóstico provável de colangiocarcinoma distal, assintomática desde a implantação da prótese biliar; o tratamento cirúrgico é contraindicado em virtude da idade avançada da paciente e de suas comorbidades.
As lesões características da paniculite pancreática são nódulos eritematosos e dolorosos, de surgimento súbito, localizados principalmente nos membros inferiores, mas também nos glúteos, tronco e membros superiores. Os nódulos podem flutuar, ulcerar e drenar secreção oleosa amarela‐marrom. Em 40% dos casos, as lesões cutâneas podem preceder os sintomas abdominais.1,4,5
Dentre os diagnósticos diferenciais, é válido citar: eritema nodoso, vasculite nodular, deficiência de alfa‐1‐antitripsina, paniculite lúpica, linfoma T paniculite‐símile, eritema endurado de Bazin e outras paniculites infecciosas.1–3
O exame histopatológico é classicamente marcado por esteatonecrose focal subcutânea e presença de “células fantasmas” patognomônicas (adipócitos necróticos anucleados com paredes espessas e obscuras contendo material granular basofílico fino intracitoplasmático).1,2,4,5
O tratamento é de suporte, com a resolução observada após tratamento do processo pancreático subjacente. Medicamentos analgésicos como anti‐inflamatórios não esteroidais, corticoides e imunossupressores são frequentemente utilizados, porém são muitas vezes inefetivos.1,2,4
A pancreatite aguda após CPRE é complicação que ocorre em até 3%–10% dos casos, dependendo de fatores de risco do paciente e da complexidade do procedimento. Caracteriza‐se por inflamação aguda do pâncreas associada à manipulação mecânica do ducto pancreático, injeção de contraste, ou edema causado pelo trauma local.6 O surgimento de paniculite pancreática após CPRE é incomum, mas pode preceder a sintomatologia abdominal.7–10
Relatamos um caso de paniculite pancreática como complicação de CPRE, sem doença pancreática prévia. Os dermatologistas devem estar atentos ao diagnóstico dessa complicação após procedimentos das vias biliares.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresRebecca Perez de Amorim: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito; aprovação da versão final do manuscrito.
Laís Maria Bellaver de Almeida: Elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Helio Amante Miot: Revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito; aprovação da versão final do manuscrito.
Juliano Vilaverde Schmitt: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito; aprovação da versão final do manuscrito.
Disponibilidade de dados de pesquisaNão se aplica.
Conflito de interessesNenhum.
EditorSílvio Alencar Marques.
Como citar este artigo: Amorim RP, Almeida LMB, Miot HA, Schmitt JV. Pancreatic panniculitis following Endoscopic Retrograde Cholangiopancreatography (ERCP): a case report. An Bras Dermatol. 2025;100:501211.
Trabalho realizado no Ambulatório de Dermatologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp), Botucatu, Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, SP, Brasil.




